segunda-feira, 30 de junho de 2003

Apontamentos agressivos em literatura e cinema



O que faz com que toda execução nos ofenda mais que um assassinato? 
    É a frieza dos juízes, a penosa preparação, 
a percepção de que um homem é ali utilizado 
como um meio para amedrontar outros.
 Pois a culpa não é punida, mesmo que houvesse uma; 
esta se acha nos educadores, nos pais, no ambiente, em nós, 
não no assassino – refiro-me às circunstâncias determinantes. 
(Nietzsche, F., 2000: 63).

         “Não matarás”, filme do diretor polonês Krzysztof Kieslowski, produzido em 1988, tanto como o aforisma acima citado, ilustra não apenas o problema da pena de morte na história da humanidade, mas acima de tudo, o problema da culpa.
           O filme é fruto da série “Decálogo”, produzida entre 1987-88, para a televisão polonesa, em que foram realizados dez pequenos filmes de cinqüenta minutos e que tratavam, sobretudo, da temática dos “dez mandamentos” bíblicos, visto ser a Polônia um país de intensa fé católica.
           Kieslowski nasceu em Varsóvia em 1941 e faleceu em 1996. Seus filmes têm como característica geral, íntima relação com seu país e sua vida, visto ter sofrido diversas formas de censura por meio de sucessivos governos e sindicatos – inclusive essa polêmica série produzida com poucos recursos financeiros, só veio a ser exibida totalmente no Brasil em 1999 e apenas em 2000, nos Estados Unidos.
          “Decálogo” fora produzida quando a Polônia ainda estava sobre o jugo comunista. O diretor, atento ao contexto político de seu país, contrapôs as metáforas bíblicas ao cenário social e às capacidades da psique humana. Dos dez filmes, apenas “Não Matarás” e “Não Amarás” foram prolongados e tornados longas-metragens. Possuem a peculiaridade dos não-romances: são ásperos, frios e cruéis em imagens e na linguagem, indo direto ao assunto. Até mesmo as referências bíblicas não são apresentadas de forma direta, servindo como ironia quando contrapostas a real condição humana.
       “Não Matarás” é um filme que trata, sobretudo, de violência – seja ela explícita, ou simbólica. O cenário é a Varsóvia no final dos anos 80, mas poderia ser qualquer cidade do mundo nos dias atuais. As imagens de aspecto sombrio em conjunto com os poucos e ásperos diálogos são propositais, pois marcam a frieza característica de um mundo que privilegia uma “pretensa” racionalidade mascarada por um aparato burocrático, insensível e totalitário, incapaz de estabelecer relações que venham a contemplar as realizações de que são desejosos os homens. O “império das leis” em sociedade torna homens em assassinos e estes últimos em vítimas de um sistema ainda mais cruel que eles.
         Assim, a temática do filme vai mais além: é tão frio e seco como as formas de punição previstas pelo Direito. Este último é o símbolo que consolida o “fazer-sofrer” como algo gratificante; ou seja, é a instituição que sustenta a concepção de que as coisas e as pessoas em sociedade têm valores (morais, qualitativos e quantitativos); onde os danos causados têm um valor negativo, precisando ser compensados (com o dano alheio, com o dano de quem supostamente fez o “mal” e que, por isso, possui culpa).
      “Culpa”, “consciência” e “dever”, são palavras que passam a ter significado a partir da origem das obrigações legais. Isso ocorreria, segundo Foucault, porque a justiça moderna tem “vergonha de punir”, seu papel seria o de educar, corrigir e até mesmo “curar” os indivíduos. Essa “vergonha” de castigar está associada ao fato de que os suplícios unem carrasco e condenado; este último tem sua sentença transformada em glória ou piedade, enquanto que o primeiro cai na infâmia por cometer tamanha violência.          
      É o que ocorre com Jack (Miroslaw Baka), personagem de “Não matarás”: sua execução por enforcamento, supostamente porque ele teria assassinado cruelmente (e sem justificativa aparente) um motorista de táxi, acabou por igualar ou mesmo ultrapassar seu crime na selvageria. Assim, o suplício enquanto forma de punição apresenta a desvantagem de glorificar o criminoso. Ao ser condenado à morte, Jack torna-se especial para o advogado que lhe defendia no caso, passa a ser digno de compaixão e admiração, apresentando-se de forma menos nociva e violenta que o sistema judiciário (polonês, especificamente).
      A “negativa” união, promovida pelos suplícios, entre carrasco e condenado faz com que haja a necessidade de tornar a condenação um procedimento burocrático. Para isso, efetua-se, historicamente, a construção de toda uma série de aparatos e mecanismos administrativos responsável por “desensibilizar” a punição. Essa possibilidade de tornar o ato de castigar uma técnica é que faz com que se descarregue o peso da “justiça” na burocracia. Nesse sentido, o sistema penal constitui-se como uma nova forma de saber, isso implica no conhecimento da infração, do responsável por ela e o que lhe conduziu ao ato considerado criminoso, além de outras questões, sobretudo que medida tomar diante de uma situação, ou seja, qual a pena a ser utilizada para cada tipo de crime.
         O quadro teórico aqui esboçado aponta para um período histórico no qual já se passa de punições em que o corpo é considerado alvo principal para um sistema judiciário amparado pela burocracia. Nesse contexto se faz necessário um questionamento: qual teria sido a razão que sustentou por tanto tempo (até fins da Idade Média e até mesmo na Era moderna, em alguns países) as formas de punição através dos suplícios?
        Foucault, em “Vigiar e Punir” atenta para o fato de que “o suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político. Faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o poder” (1987: 41).
         Dessa forma, o suplício nada mais é do que um instrumento pelo qual se mostra quem governa e o que acontece àqueles que não respeitam a ordem instituída pelo soberano. Se o que vale é a vontade do soberano, o crime é para ele um ataque que o fere diretamente, sendo assim, não compete àquele que exerce o poder, ser árbitro: ele sempre é juiz e precisa impor sua vontade fazendo compreender que será condenado aquele que não lhe dedicar obediência. A punição por suplícios consiste numa vingança do soberano, mas é para além disso, uma forma de mostrar aos outros indivíduos que alguém – que não eles, mas sobretudo alguém que lhes é soberano – concentra o poder. Em suma, é um exercício das formas de poder através da tirania.
       O protesto contra os suplícios porém, principalmente durante o século XVIII em sua metade, por parte de filósofos e teóricos, juristas, magistrados, legisladores e toda classe técnica do Direito, chamam a atenção para a necessidade de se promover uma mudança nas formas de punir, eliminando essa confrontação direta entre soberano e condenado. “É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar” (Foucault, 1987: 63).
      Essa nova concepção punitiva é decorrente da também nova concepção – presente no Renascimento – que coloca o homem enquanto medida de todas as coisas de maneira que ele deve ter sempre preservada sua “humanidade”. No caso específico da França, estudada por Foucault, a exigência de uma reforma do sistema punitivo ocorre a partir do diagnóstico da irregularidade contida no excesso do poder de punir. Tal irregularidade é resultado de fatores como a apropriação privada da justiça, ou seja, da possibilidade de se comercializar os ofícios do juiz, tornando-a onerosa; para o mesmo autor, em segundo lugar, haveria uma confusão entre dois poderes diferentes: o que formula sentenças aplicando a lei e o que cria as leis; um terceiro aspecto permearia os privilégios que algumas esferas teriam em detrimento de outras, o que causaria incertezas no exercício da justiça. Já no século XVIII, há tentativas de se “suavizar” as penas tornando-as “menos violentas”. Para alguns magistrados que defendem a reforma, a diminuição da violência nas penas faria com que elas fossem mais eficazes; é a má distribuição do poder de punir – da justiça – que incomoda os reformadores, não tanto o grau de crueldade das penas. Na passagem do século XVII para o XVIII os crimes modificam-se, havendo uma transformação na estrutura interna da delinqüência: antes homens prostrados e miseráveis, agora “matreiros que calculam” (idem: 65).
    No contexto histórico do capitalismo moderno, as práticas ilegais são realizadas por criminosos na qualidade de “profissionais”. Isso implica na diminuição de crimes violentos que têm uma suavização posterior nas leis de punição: do ataque aos corpos adota-se punições como o desvio de bens, por exemplo. A “criminalidade de sangue” do Antigo Regime é substituída por uma “criminalidade de fraude” diretamente associada ao modo de produção capitalista.
     A reforma do Direito penal é uma estratégia para remanejar o poder de punir – tornando mais eficaz, ao mesmo tempo, mais econômico e dissociado da esfera política. Para Foucault, trata-se de uma nova “economia política” do direito de punir, ou seja, de uma nova forma de se exercer o poder, isso porque o que se deseja não é deixar de punir ou punir menos, mas punir melhor; punir com menos severidade para que não se deixe nunca de punir.
    A reforma penal do século XVIII é formulada com base na teoria geral do contrato. Baseia-se em disposições que prevêem no “contrato social”, aquelas que regulam a vida dos indivíduos em sociedade, que todos os indivíduos aceitam ser punidos caso não cumpram o que fica estabelecido em sociedade, como as leis escritas, por exemplo. O criminoso, pressupõe-se, sabem todos os “cidadãos”, é aquele que rompe com o pacto social, sendo portanto, um inimigo dos que permanecem em aliança. Sendo inimigo da sociedade inteira, o criminoso insere-se na esfera da punição de maneira que o castigo penal passa a ser uma função generalizada, que se estende a todo o corpo social e a cada um individualmente. Assim, é punido quem trai: a sociedade pode então, estender todo seu peso contra o criminoso. Constitui-se, portanto, um direito de punir, que pressupõe e legitima alguém ou um grupo da sociedade a exercer o poder de punir. Tem-se que a preservação da sociedade – e do Estado – passa a ser incompatível com a existência do criminoso. Essa seria a principal justificativa da supressão dos suplícios, embora ela seja mascarada por uma suposta sensibilidade e solidariedade do homem aos seus semelhantes. Veja-se, porém, que tal idéia visa poupar os sentimentos de quem pune e não de quem é punido.
     Em síntese o direito de punir, com a reforma do sistema penal do século XVIII, antes vingança do soberano é agora associado à defesa da sociedade; torna-se então forte o bastante para ser temido sem a necessidade de massacrar os indivíduos para que sirvam de exemplo. O crime não pode apresentar vantagens, não pode ser interessante para quem pretende fazê-lo. O castigo deve encontrar a desvantagem que torne a idéia de se cometer um crime, sem atração; isso porque, o crime não é natural: é a sociedade quem o define em função de seus interesses. As formas de punição devem ser pouco arbitrárias de modo que o castigo apresente-se de maneira tão definida ao indivíduo, que sua possibilidade deva vir à sua mente no momento em que ele pensa em cometer um crime; o medo do castigo deve afastá-lo da intenção criminosa.
      O poder de punir mascara-se na natureza das coisas; embora seja algo criado pela sociedade moderna e esteja consolidado numa instituição específica, ele apresenta-se de modo quase natural, independente da vontade dos homens. Essa sutileza faz com que a melhor punição determine ao condenado fazer ou se submeter a algo que ele não quer; segundo tal lógica não há necessidade de ser violento para ter poder de punir. A punição deve ir contra a essência do próprio crime e é por isso que não é eficaz submeter os indivíduos às dores físicas: o castigo deve tirar do criminoso aquilo que ele mais preza, ou seja, aquilo que ele deseja tanto que o motivou a tirar do outro. O castigo tem sentido incerto e acidental e está carregado de toda uma série de utilidades. Tais significados serão dados e estarão vinculados à época em que se vive; mas a pena não visa um melhoramento: o castigo só faz domar o homem, acrescentando medo a ele (Nietzsche, 1998).
      Em suma, as punições - a partir da lógica burguesa caracterizada pela necessidade de normalização dos indivíduos - são determinadas pela “natureza das coisas”. Esta naturalização de determinados comportamentos produz um imaginário social que vê “o reforço coletivo da ligação entre a idéia do crime e a idéia da pena” (idem: 91), prevista no contrato social, portanto válida para todos os homens. Nesse contexto, quando se fala em “natureza das coisas”, fala-se também de leis (naturais e, portanto, universais).      Estas últimas, encaradas como algo natural (embora sejam criações sociais), determinam aquilo que se deve ou não ser ou fazer, inserindo ainda a idéia de que aqueles que assim não se portam devem ser punidos: a esfera jurídica equivalente à esfera penal existe nas sociedades modernas a partir do consenso promovido pelo pacto social. Assim, não é difícil perceber a eficácia – e função coercitiva – de certos ditos populares (em sua aparente neutralidade) como “Olho por olho, dente por dente”; ou “Cada cabeça, uma sentença”; e o que dizer do quase inofensivo “Quem avisa, amigo é”?
      O castigo não fora, neste contexto, inventado para castigar: ele é resultado de um processo que envolve um pólo positivo e outro negativo, de alguém que subjulga e de outro que é subjulgado, de algo que vale mais e de outra coisa ou pessoa que vale menos. Nestes termos, é necessário que haja, para além de esferas de dominação e de subserviência, uma continuidade no processo; é preciso haver novos sub-julgamentos a fim de que hajam também tentativas de defesa e reação dos envolvidos, no caso específico, daqueles que são oprimidos ou desprivilegiados.
      As punições enquanto motivo de inquietação humana (e literária).
    Cabe ressaltar, sobre a temática aqui apresentada, os escritos do escritor theco, Franz Kafka, que mesmo datados do início do século XVIII, parecem-nos muito pertinentes à discussão, pois estão situados num período de transição, onde já se nota práticas punitivas menos violentas – e mais eficazes segundo a lógica “humanista” concebida pelo Iluminismo e pela mentalidade burguesa que se constituía. Como ilustração podemos citar os textos de “Na Colônia Penal” e o clássico “O Processo”. Tanto um quanto outro foram escritos em 1914 e abordam o sistema penal em sua temática principal. Embora haja essa aproximação entre os dois trabalhos, o primeiro trata de uma prática judicial com relação a punição de condenados à morte através do suplício. A forma específica de tortura que se apresenta “Na Colônia Penal” realiza-se por meio de uma máquina que imprime a sentença do criminoso em seu corpo e o conduz ao falecimento após doze horas do início do procedimento. A importância desse texto consiste no fato de que ele ilustra de que forma o poder de punir dava-se nas sociedades europeias principalmente durante o Antigo Regime. 
      Nesse contexto,
Tanto o procedimento como a execução (...) não têm no momento mais nenhum 
adepto declarado em nossa colônia. Sou o seu único defensor e ao mesmo tempo 
o único que defende a herança do antigo comandante. Não posso mais cogitar de
 nenhuma ampliação do processo, dispendo todas as energias para preservar o que existe. 
Quando o antigo comandante vivia, a colônia estava cheia de partidários seus; 
tenho em parte a convicção dele, mas me falta inteiramente o seu poder; 
em vista disso os adeptos se esconderam, existem muitos ainda, 
mas nenhum o admite. Se o senhor for à casa de chá hoje, ou seja,
 num dia de execução, e ficar escutando em volta, 
talvez ouça apenas declarações “ambíguas”. (Kafka, 1991: 53).

  Como contraponto às punições decorrentes de suplícios, “O Processo”, consegue esboçar o poder de condenar atribuído ao sistema jurídico; poder este associado a uma nova dinâmica (pautada em padrões econômicos, culturais, políticos e científicos pertinentes à estrutura social burguesa).
    Em “Na colônia penal”, há a figura do soberano (o poder estatal) que imprime no corpo do condenado a sua marca: “Honra o teu superior!” (Kafka, 1991: 39). O ato criminoso realizado pelo condenado sugere uma necessidade de vingança – já que a relação estabelecida dá-se entre poder soberano e seus súditos – que exclui a necessidade de um julgamento. O terror, na punição por suplícios, é o instrumento balizar do comportamento exemplar: marcas físicas que geram pavor tanto no indivíduo violentado, quanto à memória coletiva daqueles que presenciavam o ato. Já na perspectiva elaborada em “O Processo”, o corpo do indivíduo condenado é um bem social e por isso há, neste caso, a estruturação de um aparato judicial que irá acusá-lo, julgá-lo e condená-lo: não mais haverá centralidade da função punitiva na figura de uma única pessoa (o oficial-juiz da colônia).
    Ocorre, neste sentido, uma condenação moral do indivíduo: “na punição analógica, o poder que pune se esconde” (Foucault, 1987: 88). Então, Josef K. mostra-se apreensivo quando imagina os colegas da repartição onde trabalha sabendo que ele está sendo acusado – não importando do quê –; o mesmo acontece com relação à senhora Grubach, locadora de seu domicílio; com o tio que vem visitá-lo, o advogado que ele procura para a sua defesa e até mesmo com um mero comerciante que conhece na casa deste profissional. Além disso, a categoria “tempo” é o que trata da pena: quanto maior o período de tempo decorrido, maior é o peso da culpa. Essa sensação permite a manutenção de um comportamento disciplinar: Josef K. tem sempre a impressão de que está sendo vigiado. Como não sabe quem, nem mesmo de onde vêm os olhares que lhe são destinados, tem sempre o cuidado de não realizar nada de “errado” a fim de que não possa ‘agravar’ ainda mais a (possível) ‘gravidade’ proveniente da sua condição de acusado, e conseqüentemente, o aumento de sua (suposta) pena. Em suma, o sentimento moral é tão forte que sempre está presente na mente humana de maneira que a própria consciência do indivíduo, não só a lei (e a punição) prevista pela legislação vai conduzir seu comportamento. Josef K. de Kafka é um personagem que bem ilustra essa má-consciência (a culpa, em Nietzsche), mas o que dizer de Raskolnikov, seu “crime e castigo” em Dostoievski?
     Toda a arquitetura dos lugares sombrios que K. freqüenta sugere que ele pode estar sendo vigiado não se sabe por quem. A constante impressão de estar sendo vigiado (como num panóptico) é o que determina com tanta eficácia a conformidade do seu comportamento: imaginar-se sempre enquanto alvo, torna a inspeção permanente sem que haja necessidade de uma vigilância efetiva. Tal passagem de “O Processo” remete-nos à idéia central do romance “1984” do escritor inglês George Orwell: a idéia do “Big Brother” está diretamente associada à lógica do panóptico, sem que as pessoas precisem estar presas numa estrutura arquitetônica; elas podem achar que são livres, mesmo sabendo que sua liberdade é limitada e condicionada por uma força que elas não sabem de onde vem, mas que existe e pode se voltar contra elas quando desafiada. Assim, algo tão espontâneo como “o fato de estar ali parado, sem falar nada, devia chamar a atenção”. (Kafka, 1989: 75). Vê-se, o quão acuado está o indivíduo:
    Apressado, sem ter tempo para pensar e reunir os vários planos que havia elaborado durante a semana, vestiu-se e, sem tomar o café da manhã, correu para o subúrbio que lhe fora indicado. Curiosamente, embora tivesse pouco tempo para olhar em volta, encontrou os três funcionários que haviam participado do seu caso, Rabensteiner, Kullich e Kaminer. Os dois primeiros cruzaram o caminho de K. num bonde. Kaminer estava sentado no terraço de um café e se inclinou curioso sobre o parapeito no momento em que K. passou por ele. Os três certamente acompanharam K. com o olhar e ficaram admirados por ver o seu superior correndo; uma certa teimosia tinha impedido K. de tomar uma condução, repugnava-o qualquer ajuda externa neste seu caso, por menor que ela fosse; também não queria recorrer a ninguém para não pôr a par, nem mesmo remotamente, quem quer que fosse; por fim, ele também não tinha a mínima vontade de se rebaixar diante da comissão de inquérito com uma pontualidade excessiva. Agora entretanto ele corria para chegar no máximo às nove horas, embora não tivesse sido marcada uma hora definida. (Kafka, 1989: 41).
    Portanto, qualquer cidadão sabe – embora talvez não tenha consciência disso – de que assim que se comete um crime, o texto da lei previsto nos Códigos toma corpo (literalmente), concretizando-se através de procedimentos como acusação, investigação, julgamento e condenação. Partindo desse consenso, alguma culpa deve pertencer a (...) Josef K., pois uma manhã ele foi detido” (Kafka, 1989: 7).
    Há ainda “elementos” que não estão “aptos” a conviver socialmente, visto não terem clara esta concepção fundamental de “cidadania”. Estes “elementos” enquadram-se como “delinqüentes”, justamente por sua necessidade de promover a “anomia social”, nos termos durkheimianos. Na literatura, outro exemplo é “Meursault”, personagem de “O Estrangeiro” escrito pelo francês/argelino, Albert Camus. Meursault carrega em sua essência características de um criminoso – como se tal impressão estivesse inscrita em seu código genético: pressuposto da noção de eugenia e de degeneração – posto que haveria nele uma tendência ao crime proveniente do seu caráter. Toda a sua existência fora permeada por condutas desviantes da normalidade (como seu aparente desprezo pela mãe, a qual residia num asilo distante do filho; este por sua vez, não teria demonstrado tristeza diante da morte daquela). A possibilidade de crime, neste caso específico, existe antes mesmo de sua efetivação e tal acontecimento é meramente o ápice de sua vida desregrada. O delinqüente (criminoso) possui uma afinidade especial com seu crime e o degenerado é autor legítimo deste e está conectado ao seu delito, como que por consanguinidade.
    Voltemos então às cenas de “Não Matarás”: logo em seu início acompanhamos as imagens de animais mortos com destaque para um gato enforcado em contraponto e em paralelo ao ato de Jack ao tentar estrangular um motorista de táxi. Não obtendo êxito total, golpeia cruelmente a cabeça da vítima. As duas cenas são diferentes porque, embora não nos demos conta, o sentimento que oferecemos a um gato não é o mesmo que devotamos a uma pessoa, justamente por não nos identificarmos totalmente com um animal. O que então faz com que as duas cenas nos choquem? Seria justamente porque elas nos fazem reconhecer algo que toda a nossa pretensa idéia de evolução, progresso e civilização tem tentado encobrir através dos valores que atribui para si e para os indivíduos: a agressividade inerente à natureza do homem.
    Se assim é, não parece paradoxal o fato de que Jack mesmo sendo assassino pôde não se conformar com a morte da irmã de 12 anos, sentindo até mesmo uma certa responsabilidade pelo ocorrido. Porque será então que ele sente culpa pela morte da irmã e não pela morte do motorista onde teve participação efetiva? Nietzsche diria talvez que ele é egoísta assim como todo ser humano, que antes de se importar com o outro, está mais atento a si mesmo, mesmo que possua conduta ou discurso altruístas.
   A culpa, portanto, faz com que o homem seja “mais sensível ao desprezo que vem dos outros do que ao que vem de si mesmo” (Nietzsche, 2000: 277) e mascara o fato de que “quem quer dar um bom exemplo deve acrescentar à sua virtude um grão de tolice; então os outros imitam e também se elevam acima daquele imitado – algo que as pessoas adoram” (idem: 279). Novamente: na medida em que o homem torna-se mais influenciado pela tecnologia, pela burocracia e pela racionalidade em todos os campos de sua vida – sem esquecer campo do científico e de sua própria psique –, os elementos da cultura passam a preponderar sobre aspectos que são decorrentes de suas pulsões e instintos; assim têm-se aparatos técnico-jurídico-morais – e que alimentam a culpa - para sucumbir seu instinto, sua agressividade.

Referência

CAMUS, Albert. O Estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Imortais da Literatura Universal, nº 49).
DOSTOIÉVSKI, F. Crime e Castigo. São Paulo: Abril Cultural,
FOUCAULT. Michael. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
KAFKA, Franz. O veredicto/Na colônia penal. São Paulo: Brasiliense, 1991.
________.O Processo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
11
________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.
Araraquara, SP, Brasil, 2003.