quinta-feira, 27 de junho de 2013

Dias de Clélia

Precisava só de cola.
Dessas que colam papéis. Adora papéis com acento. Não consegue pensar em papeis. Mas essa nova gramática serve para imaginá-los em branco. Acentuados são, necessariamente: escritos, desenhados, numerados, rasurados, cheios, usados, amassados, rasgados até. É que nem aquela coisa de Geo-grafia: sem ação humana devia ser espaço expressado, escrivinhado ou imaginado diferente daquelas vezes em que o bicho-homem pôs as patinhas.
Era disso que precisava, uma pasta colante. Achou a papelaria.
A Lapa de São Paulo não é a mesma do Rio, mas bem que podia ser...
Bom, não era. O balconista, um senhor, bem senhor, mas bem simpático. Ela disse que precisava de cola. Dessas de colar papéis. Em seguida mandou: "cola tenaz" que é essa mania que a gente tem de usar a marca canonizada, consagrada ao invés do nome da coisa, o substantivo. Que nem 'danone': coisa restrita quando era criança. Só passou a consumir mais disso depois que virou yogurte. Ela é uma só, dentro e no meio de um mundaréu de gente. Depois que a ação humana explorou o yogurte cuspiu a bebida láctea. Só. Bebida pra alimentar gente em bando com menos vacas e funcionários, mas mais rendimento. Bom, ele entendeu. Disse: tem bastão e líquida. Qual você prefere? Mas não a deixou responder: a líquida, neh? É melhor, completou. Ela ficou na dúvida. Pensou nos papéis. Eram papéis delicados. Trampo besta. Acha que é antropóloga de plantão, mas faz as vezes de burrocrata. Ela e os outros antropológos, o mundaréu antropo-logicamente contemporâneo. Trampo chato. Precisa prestar contas. Precisa ué, tem que colar papéis em folhas A4 numeradas. Tem. Então faz. Ela decidiu. Ele queria vender um bastão imenso, dizendo ser bom e barato. Mas ela ainda fica admirando a si mesma quando consegue perceber o que de fato precisa. Não precisava de um tubo de cola bastão imenso. Precisava só colar os papéis do presente. Guardar cola pro futuro pra quê?
Ele disse algo sobre o passado. Falou de máquinas de escrever. "Mas não é do seu tempo". É sim! É? Tenho uma 'olivetti'. Mas ela pensava nos papéis e no que ainda tinha que fazer na rua. A Lapa de São Paulo é diferente da carioca, mas tem muita coisa pra fazer. Mas não adiantava: ela tem que voltar e colar papéis.
Atravessa a rua na faixa de pedestre.


                                                       Já do outro lado, um desconhecido diz: quer fazer rolo na bolsa? 
- Não, obrigada. 
     E não resiste: precisa olhar pra bolsa dele. Era maior. Até bonita. 
Mas a dela tinha história. A dela tinha a história que era dela. 
Não ia se apropriar assim da história do outro só por causa do rolo da mercadoria.
 Diante da recusa ele, dono da Lapa toda, em quase carioquês:
- A MINHA É MAIS BONITA!


Foto: Isabela Morais, menina da Clélia.
A quem dedico.

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