sábado, 31 de agosto de 2013

Raiou o sol de Naná

Esse texto nasceu durante uma experiência músico-gestual-visual-sonora não-passiva.
Passiva é essa coisa onde tem um palco, alguém distante que se apresenta e um público leigo e/ou especializado sentado, calado, quieto.
Aquilo ali era uma imersão. Ainda que se ficasse sentado, calado e quieto. E também por isso mesmo.
Ainda que se cumprisse a disposição e o ordenamento das cadeiras e da instituição.
Se disser que era um show, tá errado.
Já foi ao Recife?
Já foi à Floresta Amazônica?
Ao Recife já. "Nagô, Recife nagô".
À Floresta, Naná me levou. Eu tinha uma garrafa d'água pra matar a sede e um xale para cobrir os ombros da friagem. À Floresta em plena civilização dos Serviços do Comércio. Em plena convivência interna. Em horário nobre. Em sexta noturna.
Aquilo era teletransporte.
- "Eu quero ver dois cantador embolando. Eu quero ver dois cantador embolar".
E pôs todo mundo pra jograr entre Garimpos e Ginásios.
- "Eu quero ver é sol raiar".
Raiou em lua mansa de Araraquara. Que as palavras evocadas tem poder transformador. 
Foi "na batida do tambor e no chiado do ganzá" com "orquestra quase afinada":
- "Ah, bum!"
Porque eram "as vozes de Araraquara que estavam ali" entre Garimpos e ginásios poliesportivos.
E conversou.
- "Em todo lugar que eu vou, eu vou dando os meus gritos".
- "Eu sou um Brasil que o Brasil, de certa forma, não conhece".
- Traduzir ou contrapor sons da natureza é uma experiência a ser vivenciada. O som da chuva, da floresta nossos tímpanos não alcançam o som do Rio Amazonas. Não vou por isso num cd, não tem cabimento.
E ela pensava na dimensão ritual que uma apresentação como aquela, tinha. 
Porque embora ele admitisse que sua dimensão humana era um limite para ser natureza, o som e o uso que faz do corpo contradiz toda limitação que admite.
Pois ele é um mensageiro. O mensageiro não vem só pra ensinar. Vem também pra confundir.
E ela continuava pensando e vivendo o ritual interno e externo.
E eis que surgem na tela elementos e signos bem presentes no catolicismo popular do Brasil. Que agora lincavam com os signos negros e indígenas antes expressos.
E eis que entre os sons da natureza, há sons de povos, sons étnicos, sons de lugares. 
Aquilo era uma paisagem sonora. Naná empresta o corpo e por meio dele estabelece comunicação.
Naná era o cavalo do terreiro. Aquilo era teletransporte.
E aquilo era admitir que, de certa forma, ser o Brasil que o Brasil desconhece é atestar a grande influência que as práticas culturais populares e as formas rituais de grupos negros e indígenas de diversas etnias têm na produção musical brasileira como um todo.
O artista de grande projeção na música do mundo é o mensageiro, o criador e a criatura.
Faz mediações e estabelece comunicações emitindo sons e realizando gestos que conectam elementos naturais (água, vento), elementos da natureza (a mulher, o homem e os outros animais) e práticas culturais de grupos e povos diversos.
Não basta se conectar a internet pra fazer isso. Não basta ter microfones fazendo eco. Antes precisa de conexão com o cosmos e abertura para viver o estranhamento. Abertura para viver a experiência com o outro. Pra sentir.
Depois, ele lembra a nega do cabelo duro, a moda e o pente que a penteia. E como se tudo tivesse cabimento faz um som de rave com aquilo que ela visualizou, com o perdão dos percussionistas, como sendo quatro caxixis gigantes.
- "Vento, êo".

Quem não tem papel escreve no guardanapo. Que ela também tem mensagem pra transmitir. E quando baixa o santo, baixa ali em qualquer lugar.
- "O candomblé ainda é o que faz o negro se juntar. O samba é canção de guerra não foi feito só pra brincar".
Agora é no verso, que o primeiro plano da árvore transformada acabou:
- "Atraca atraca que vem Nanã êê. Atraca atraca que vem Nanã, êa".
E falou de vida.
E falou de morte que nem ele e nem ninguém aqui vai ficar pra semente.  
Nem na Araraquara e nem em nenhum lugar.
Tem que estar conectado ao cosmos pra saber. Mas se não estiver, basta estar vivo.
Embora sempre se seja semente e semeador. Que ser mensageiro é semear.
E depois de provocar estranhamento e fascínio como condutor de uma excursão rumo ao desconhecido, deixou as pessoas todas imersas num mar de sons e palmas "daqui pra lá" e "de lá pra cá", entregues às suas próprias vozes. E mesmo sem ver e sem pensar, ficaram todas elas não-passivas e conectadas por meio do som e dos corpos. E para provar que a música cânone é muitas vezes, fruto do popular. E isso quer dizer que a música só é cânone porque comunica. Encontra ressonância no coletivo e não porque o artista é um ser do além, intocável e distante da ralé.
Ao contrário.
Porque mensageiro vem que é pra transmitir.
E unir.
Faz é tempo que esse moço tá fazendo isso.



Dobrou cuidadosamente o guardanapo.
Quando saiu do transe, viu uma amiga que não via há tempos. Ela fica por alguns meses em Araraquara onde o sol de Naná raiou e mais outros entre sons, águas e sóis de Xingu.
E foi-se.
Em outro espaço sideral viu outra amiga que a imaginou durante a imersão: - "A Li vai pirar".
E pirou. Que não existe criação e criatura sem alguma loucura.

  
  



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